O politicamente correto e o politicamente incorreto são dois chifres da mesma cabra: o legalismo. Há tempos tenho advertido pra isso. O fechamento da exposição de arte queer de Porto Alegre é apenas a ponta do iceberg do legalismo difuso em nossas vidas. Esse episódio ilustra bem como a correção e a incorreção se complementam.
Fazer piadas com nordestinos, gays, pretos e pobres é expressão da sacrossanta liberdade individual? Ora, colocar buceta em Jesus e caralho na Virgem Maria também o é. Os cultores da nova religião da liberdade ignoram aquilo que o divino Marque de Sade nos ensinou há três séculos: quando tudo é permitido nada é permitido.
O avesso do liberalismo não é o comunismo. Esse é o conto de fadas repetido por adultos que não saíram das fraldas. O avesso do liberalismo é o legalismo. O legalismo é a maneira pela qual as democracias liberais estão conseguindo chegar ao totalitarismo sem precisar de um Estado ditatorial. O legalismo é forma legal do liberalismo. O dispositivo de controle interno ao fluxo livre de capital, seja financeiro ou simbólico.
Pastores dizem todos os dias e noites em seus cultos que gays são possuídos pelo demônio. Que as religiões africanas são enviadas de Satanás. Deputados defendem torturadores. Manifestações em favor da ditadura. Mensagens de incitação ao ódio, a começar pelo presidente dos EUA. E o que é criminalizado? Uma exposição de arte queer. Mas a criminalização desses outros discursos está sendo preparada pelas esquerdas e pelas militâncias emancipacionistas. Não tarda a se consumar. E então teremos uma guerrilha de vingança. Um ciclo infinito de combate entre formas de liberdade que se acham mais livres que outras formas de liberdade.
Os defensores do fechamento da exposição alegam atentado contra símbolos religiosos. Em todo mundo as religiões foram e são agentes de perseguição, de violência, de assassinato e de extermínio de todos que transgridam seus dogmas. Agora os religiosos se sentem ofendidos por uma exposição de arte macular seus simbolozinhos. Que sensibilidade divina.
Poderíamos passar o dia inteiro elencando exemplos de como diversas religiões destruíram e roubaram símbolos pagãos. Como roubaram e deturparam outros signos, usando-os a seu bel-prazer. Mas isso pouco importaria. O objetivo do legalista contemporâneo é apagar tudo isso. E ficar apenas com a versão edulcorada dos fatos.
A forma do legalismo é a forma generalizada do capitalismo atual. Talvez nunca tenhamos disposto de tantas ferramentas de expressão individual e coletiva. Entretanto, nessa mesma época da possibilidade de expressão e das individualidades, onde todos podem expressar pela internet sua visão crítica sobre tudo, optamos pelo quê? Pelo processo. Pela intimidação. Pela carteirada. Pelo linchamento. Pelo silenciamento do outro. Estamos assim retroagindo a modos de legalismo vingativo anterior aos Estados modernos, baseado na cultura dos processos, dos linchamentos e das intimidações.
O problema é que a dita esquerda, ou partes consideráveis do que se autodefine como esquerda, tampouco escapa às seduções do legalismo. Tempos atrás vimos o triste espetáculo de linchamento da companhia teatral Os Fofos, processados por racismo. Recentemente vimos o patético espetáculo dos chamados “leitores sensíveis”, novos censores da literatura, hauridos e imunizados dor sua linda hipersensibilidade humanista.
Enquanto não compreendermos essa dialética demoníaca entre liberdade-opressão e liberalismo-legalismo, continuaremos a ser os algozes e os censores de nós mesmos. Transformaremos a exceção em regra. O avesso em direito. E viveremos naquela “gaiola de ouro” descrita por Max Weber. Um mundo de vigilância a céu aberto, uma redoma ao ar livre, encarcerados na prisão invisível da linguagem.