Pacifistas e Radicais – um casal infernal

Trecho do livro “Aos nossos amigos e amigas”:

PACIFISTAS E RADICAIS – UM CASAL INFERNAL

Quarenta anos de contrarrevolução triunfante no Ocidente nos infligiram duas fraquezas irmãs, ambas igualmente nefastas, mas que juntas formam um dispositivo impiedoso: o pacifismo e o radicalismo.

O pacifismo engana e engana a si mesmo ao fazer da discussão pública e da assembleia o modelo acabado da política. É em virtude disso que um movimento como o das praças se vê incapaz de se tornar outra coisa que não um insuperável ponto de partida. Para compreender o que acontece com a política não há outra coisa a fazer senão desviar até a Grécia, mas desta vez até a antiga. Afinal de contas, foi ela que inventou a política. É algo que os pacifistas detestam lembrar, mas os gregos antigos inventaram a política de início como forma de continuar a guerra por outros meios. A prática da assembleia na escala da cidade provém diretamente da pratica da assembleia dos guerreiros. A igualdade no uso da palavra decorre da igualdade diante da morte. A democracia ateniense é uma democracia hoplita. Ali, só se é cidadão porque se é soldado; daí a exclusão das mulheres e dos escravos. Numa cultura tão violentamente agonística como a cultura grega clássica, o debate vê a si mesmo como um momento de confronto guerreiro, agora entre cidadãos, na esfera da palavra, com as armas da persuasão. Alias, “agon” significa tanto “assembleia” quanto “concurso”. O cidadão grego completo é aquele que é vitorioso pelas armas como pelo discurso.

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Sobretudo, os gregos antigos conceberam, no mesmo gesto, a democracia de assembleia e a guerra como carnificina organizada, e uma como garantia da outra. Aliás, a invenção da primeira só lhes é creditada na condição de ocultar seu elo com a invenção desse tipo tão excepcional de massacre que foi a guerra de falange – essa forma de guerra em linha que substitui a habilidade, a bravura, a proeza, a força singular, toda a manifestação de talento, pela disciplina pura e simples, a submissão absoluta de cada um ao todo. Quando os persas se viram diante dessa forma tão eficaz de conduzir a guerra, mas que reduz a vida do soldado da falange a nada, eles a consideraram, e com justiça, perfeitamente bárbara; da mesma maneira que fizeram, na sequência, tantos outros inimigos que ainda seriam esmagados pelos exércitos ocidentais. O camponês ateniense prestes a se fazer trucidar na primeira linha da falange de maneira heroica diante de seus entes queridos é a outra face do cidadão ativo tomando parte na Bulé. Os braços sem vida dos cadáveres estirados nos campos de batalha da Antiguidade são a contrapartida necessária dos braços que se levantam para intervir nas deliberações da assembleia. Esse modelo grego de guerra está ancorado tão poderosamente no imaginário ocidental que quase se esquece que, no exato momento em que os hoplitas atribuíam o triunfo àquela falange que ao invés de ceder aceita um número máximo de mortos no choque decisivo contra outra, os chineses inventavam uma arte da guerra que consistia justamente em reduzir as perdas, em fugir tanto quanto possível do confronto, em procurar “ganhar a batalha antes da batalha” – mesmo que isso significasse exterminar o exército vencido, uma vez obtida a vitória. A equação “guerra=confronto armado = carnificina” nasce na Grécia antiga e chega até o século XX: no fundo, é a definição ocidental aberrante de guerra há dois mil e quinhentos anos. Que denominem “guerra irregular”, “guerra psicológica”, ou “guerrilha” o que em outros lugares é a norma da guerra, eis mais um aspecto dessa aberração.

O pacifista sincero, aquele que não está procurando apenas racionalizar sua própria covardia, comete a façanha de se enganar duas vezes sobre a natureza do fenômeno que pretende combater. Não só a guerra não é redutível ao confronto armado nem ao massacre, como ela é a própria matriz da política de assembleia que ele defende. “Um guerreiro de verdade”, dizia Sun Tzu, “não é belicoso; um lutador de verdade não é violento; um vencedor evita o combate”. Dois conflitos mundiais e uma aterradora luta planetária contra o “terrorismo” nos ensinaram que é em nome da paz que se desenrolam as mais sangrentas campanhas de extermínio. No fundo, a rejeição da guerra só exprime uma recusa infantil ou senil em admitir a existência da alteridade. A guerra não é a matança, mas sim a lógica que regula o contato de potências heterogêneas. Ela é travada por todos os lados, sob inúmeras formas, e na maioria das vezes por meios pacíficos. Se há uma multiplicidade de mundos, se há uma irredutível pluralidade de formas de vida, então a guerra é a lei de coexistência nesta terra. E nada permite pressagiar o resultado do encontro de contrários: eles não habitam mundos separados. Se nós não somos indivíduos unificados dotados de uma identidade definitiva como a polícia dos papéis sociais desejava, mas sim o lugar de um jogo conflitual de forças cujas configurações sucessivas desenham equilíbrios provisórios, temos que reconhecer que a guerra está em nós – a guerra santa, dizia René Daumal. A paz não é possível nem é desejável. O conflito é a própria matéria daquilo que se é. Resta adquirir uma arte de como conduzir isso, que é uma arte de viver situacionalmente, e que supõe delicadeza e mobilidade existencial mais do que vontade de esmagar aquilo que não somos.

O pacifismo atesta, assim, ou uma profunda burrice ou uma completa má-fé. Mesmo o nosso sistema imunológico se baseia na distinção entre amigo e inimigo, sem a qual morreríamos de câncer ou de qualquer outra doença autoimune. Aliás, nós morremos de câncer e de doenças autoimunes. A recusa tática do confronto é ela mesma uma astúcia de guerra. Compreendemos muito bem, por exemplo, por que é que a Comuna de Oaxaca se autoproclamou pacífica de imediato. Não se tratava de recusar a guerra, mas de recusar ser esmagado num confronto militar com o Estado mexicano e seus escudeiros. Como explicavam os camaradas do Cairo: “Não devemos confundir a tática que empregamos quando cantamos a ‘não violência’ com uma fetichização da não violência.” De resto, quanta falsificação histórica é necessária para encontrar antepassados apresentáveis para o pacifismo! É como esse pobre Thoreau: foi só acabar de morrer que o transformaram num teórico de A desobediência civil, amputando o título de seu texto Resistência ao governo civil. Não tinha ele, no entanto, escrito com todas as letras em seu Um apelo em prol do capitão John Brown: “Acredito que finalmente os rifles e os revólveres Sharp foram utilizados por uma causa nobre. As ferramentas estavam nas mãos daqueles que podiam usá-las. A mesma cólera que outrora varreu o templo, irá varrê-lo de novo. A questão não é saber qual será a arma, mas o espírito com que ela é utilizada.” Mas o mais hilariante em matéria de genealogia falaciosa é, certamente, a transformação de Nelson Mandela, o fundador da organização de luta armada do ANC [Congresso Nacional Africano], num ícone mundial da paz. Ele próprio conta: “disse que o tempo da resistência passiva tinha chegado ao fim, que a não violência era uma estratégia inútil e não poderia jamais derrubar um regime de minoria branca decidido a manter-se no poder a qualquer custo. Ao fim e ao cabo, disse eu, a violência era a única arma que destruiria o apartheid e devíamos estar preparados para, num futuro próximo, usar essa arma. A multidão ficou excitada; os jovens, em especial, batiam palmas e gritavam cheios de entusiasmo. Estavam prontos a fazer o que eu dissesse, ali e naquele momento. Nessa altura, comecei a cantar uma canção de libertação, cuja letra dizia ‘Eis os inimigos, vamos pegar nas nossas armas e atacá-los’. Cantei essa canção e a multidão acompanhou-me, e quando terminou a canção apontei para a polícia e disse: ‘Ei-los, os nossos inimigos!’”

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Décadas de pacificação das massas e de massificação dos medos fizeram do pacifismo a consciência política espontânea do cidadão. Cabe a cada movimento, agora, lidar com este estado de coisas desolador. Na praça Catalunya em 2011, por exemplo, vimos pacifistas entregando manifestantes vestidos de preto à polícia, assim como em Gênova em 2001 vimos alguns “Black Blocs” serem linchados. Em resposta, os meios revolucionários segregaram, como anticorpos, a figura do radical – aquele que procura o oposto do cidadão em todas as questões. Ao banimento moral da violência num, o outro responde com sua apologia puramente ideológica. Enquanto o pacifista procura se abster do curso do mundo, permanecendo bom e não cometendo nada de mau, o radical se abstém de qualquer participação no “existente” através de pequenas ilegalidades enfeitadas por “tomadas de posição” intransigentes. Ambos aspiram à pureza, um pela ação violenta, o outro abstendo-se dela. Cada um é o pesadelo do outro. Não se sabe se essas duas figuras subsistiriam por muito tempo se uma não tivesse a outra em seu interior. Como se o radical vivesse apenas para estremecer o pacifista que há nele próprio e vice-versa. Não é por acaso que a Bíblia das lutas cidadãs norte-americanas desde os anos 1970 se intitule Rules for radicals, de Saul Alinsky. É que os pacifistas e os radicais estão unidos numa mesma recusa do mundo. Eles usufruem de sua exterioridade em qualquer situação. Ela deixa eles chapados, faz com que sintam uma sensação de excelência indescritível. Preferem viver como extraterrestres – tal é o conforto autorizado, por algum tempo ainda, pela vida das metrópoles, seu biótopo privilegiado.

Desde a derrota dos anos 1970, a questão moral da radicalidade substituiu a questão estratégica da revolução de maneira imperceptível. O que significa que a revolução sofreu o destino de todas as coisas nestes decênios: foi privatizada. Transformou-se numa oportunidade de valorização pessoal, em que a radicalidade é o critério de avaliação. Os gestos “revolucionários” já não são apreciados a partir da situação em que se inscrevem, dos possíveis que aí abrem ou fecham. Em vez disso, extrai-se de cada um deles uma forma. Tal sabotagem, feita em tal momento, de tal maneira, por tal razão, torna-se apenas uma sabotagem. E a sabotagem, enquanto prática carimbada como revolucionária, vai sabiamente inscrever seu lugar numa escala, em que o coquetel molotov se situa acima do lançamento de pedras, mas abaixo do tiro nas pernas, que por sua vez não vale o mesmo que uma bomba. O drama é que nenhuma forma de ação é revolucionária em si mesma: a sabotagem foi praticada tanto por reformistas como por nazis. O grau de “violência” de um movimento não indica em nada sua determinação revolucionária. Não se mede a “radicalidade” de uma manifestação por meio do número de vitrines quebradas. Ou, se se mede, então há que se deixar o critério da “radicalidade” àqueles cuja preocupação é medir os fenômenos políticos, colocando-os em sua esquelética escala moral.

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Quem quer que comece a frequentar os meios radicais se admira de início com o hiato que reina entre seus discursos e suas práticas, entre suas ambições e seu isolamento. Eles parecem como que condenados a uma espécie de autodestruição permanente. Não demora muito tempo para perceber que eles não estão ocupados em construir uma força revolucionária real, mas em alimentar uma corrida de radicalidade que satisfaz a si própria – e que se desenrola indiferentemente no terreno da ação direta, do feminismo ou da ecologia. O pequeno terror que aí reina e que torna o mundo todo tão duro não é o do partido bolchevique. É antes o da moda, esse terror que ninguém exerce pessoalmente, mas que se aplica a todos. Teme-se, nesses meios, deixar de ser radical, como do outro lado se teme deixar de estar na moda, de ser cool ou hipster. Precisa-se de pouco para manchar uma reputação. Evita-se ir à raiz das coisas em proveito de um consumo superficial de teorias, de manifestações e de relações. A competição feroz entre grupos, como também entre si, determina uma implosão periódica. Há sempre carne fresca, jovem e iludida para compensar a partida dos esgotados, dos traumatizados, dos enojados, dos esvaziados. Uma vertigem assalta a posteriori aquele que desertou desses círculos: como é que pudemos nos submeter a uma pressão tão mutiladora por questões tão enigmáticas? É o gênero de vertigem que deve tomar qualquer ex-executivo esgotado que virou padeiro ao se lembrar de sua vida pregressa. O isolamento desses meios é estrutural: entre eles e o mundo, a radicalidade foi interposta como padrão; já não percebem mais os fenômenos, apenas sua medida. Num determinado ponto de autofagia, vão competir por radicalidade através da crítica do próprio meio; o que em nada fere sua estrutura. “Parece-nos que o que realmente suprime a liberdade”, escrevia Malatesta, “e torna impossível a iniciativa, é o isolamento que produz a impotência”.1 Desse modo, que uma fração de anarquistas se autoproclame “niilista” é de todo lógico: o niilismo é a impotência de acreditar naquilo em que no entanto se acredita – no caso, na revolução. Donde não há niilistas, há apenas impotentes.

Ao se definir como produtor de ações e de discursos radicais, o radical acabou por forjar uma ideia puramente quantitativa da revolução – como uma espécie de crise de superprodução de atos de revolta individual. “Não percamos de vista”, escrevia Émile Henry, “que a revolução será a resultante de todas essas revoltas particulares”. A história está aí para desmentir essa tese: seja a revolução francesa, russa ou tunisiana, todas as vezes a revolução é a resultante do choque entre a situação geral e um ato particular – a invasão de uma prisão, uma derrota militar, o suicídio de um vendedor ambulante de fruta -, e não a soma aritmética de atos de revolta separados. Essa definição absurda de revolução está provocando seus danos previsíveis: esgotamo-nos num ativismo que não se enraíza em nada, entregamo-nos a um culto mortífero da performance, no qual se trata de atualizar a todo o momento, aqui e agora, a identidade radical – seja nas manifestações, no amor ou no discurso. Isso dura um tempo – o tempo de burnout [exaustão], de depressão ou de repressão. Sem que ninguém tenha mudado nada.

Se uma acumulação de gestos não chega a construir uma estratégia, é porque gestos não existem em absoluto. Um gesto é revolucionário não por seu conteúdo próprio, mas pelo encadeamento de efeitos que engendra. Não é a intenção dos autores, mas sim a situação que determina o sentido de um ato. Sun Tzu dizia que “é preciso exigir a vitória à situação”. Todas as situações são compósitas, atravessadas por linhas de força, por tensões, por conflitos explícitos ou latentes. Assumir a guerra que está aqui, agir estrategicamente pressupõe que se parta de uma abertura à situação, da compreensão de sua interioridade, do domínio das relações de força que a configuram, das polaridades que a trabalham. É pelo sentido que adquire no contato com o mundo que uma ação é ou não revolucionária. Atirar uma pedra nunca é apenas “atirar uma pedra”. É algo que pode congelar uma situação ou desencadear uma intifada. A ideia de que se poderia “radicalizar” uma luta pela importação de toda a tralha de práticas e discursos considerados radicais configura uma política de um extraterrestre. Um movimento só vive pela série de deslocamentos que opera ao longo do tempo. Ele é a todo o momento, portanto, certa distância entre o seu estado e o seu potencial. Se ele para de se deslocar, se ele abandona seu potencial por realizar, ele morre. O gesto decisivo é aquele que se encontra um passo à frente do estado do movimento e que, rompendo com o status quo, abre o acesso a seu próprio potencial. Esse gesto pode ser o de ocupar, de esmagar, de atacar, ou apenas o gesto de falar com verdade; é o estado do movimento que decide. É revolucionário aquilo que efetivamente causa uma revolução. Se isso é algo que não pode ser determinado antes dos fatos, certa sensibilidade às situações, junto a algum conhecimento histórico, ajuda muito a intuir.

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Deixemos a preocupação com a radicalidade aos depressivos, aos jovenzinhos2 e aos perdedores. A verdadeira questão, para os revolucionários, é fazer crescer as potências vivas das quais participam, de cuidar dos devires-revolucionários com o propósito de chegar enfim a uma situação revolucionária. Todos aqueles que se deleitam ao opor de maneira dogmática os “radicais” aos “cidadãos”, os “revoltados em ação” à população passiva, criam barreiras a tais devires. Nesse ponto, eles antecipam o trabalho da polícia. Atualmente, é preciso considerar o tato como a virtude revolucionária primordial, e não a radicalidade abstrata; e por “tato” entendemos aqui a arte de cuidar de devires-revolucionários.

Entre os milagres da manifestação no Vale de Susa, é preciso incluir o fato de ela ter arrancado um bom número de radicais da identidade que eles tão penosamente tinham forjado. Ela os fez voltar à terra. Ao retomar o contato com uma situação real, eles conseguiram deixar para trás boa parte de seu escafandro ideológico, atraindo, claro, o ressentimento inesgotável daqueles que permaneceram confinados nessa radicalidade intersideral na qual mal se consegue respirar. Isso certamente se deve à arte especial que essa luta soube desenvolver para evitar ser capturada na imagem que o poder lhe atribuía para melhor delimitá-la – seja como um movimento ecológico de cidadãos legalistas ou como uma vanguarda de violência armada. Alternando manifestações em família com ataques ao canteiro de obras do TAV, recorrendo tanto à sabotagem quanto aos prefeitos do vale, associando anarquistas e vovozinhas católicas, eis uma luta que ao menos isto tem de revolucionário, de ter sabido desativar o par infernal de pacifismo e radicalismo. “Viver de maneira política”, resumia um dândi Stalinista antes de morrer, “é agir em vez de ser agido, é fazer política em vez de ser feito e refeito por ela. É conduzir um combate, uma série de combates, fazer uma guerra, sua própria guerra com objetivos de guerra, com perspectivas próximas e longínquas, uma estratégia, uma tática”.

1Errico Malatesta, Escritos revolucionários. Trad. bras. de Plinio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2015

2No original, jeunes-filles, literalmente, “raparigas”. No livro de autoria de Tiqqun, La théorie de la Jeune-Fille (Paris: Mille et une Nuits, 2001), a rapariga em questão é uma alusão à mulher-mercadoria, objeto de consumo, que vive na aflição de não ser comprada, encarnando a própria reificação. [N.E.]

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